05 outubro 2007

A Deusa e o Guerreiro

Coexistem várias lendas relacionadas com a origem mítica da nossa cidade. Uma das mais interessantes, porventura uma das mais belas, respeita às suas colinas, perdidas hoje em dia entre o casario. A lenda dá-nos conta da paixão que envolveu Ofiússa, a deusa serpente, e Ulisses, o grande herói grego intimamente ligado ao mito criador de Lisboa, em tempos Ulysipona.

Cedo a palavra ao professor Vitor Manuel Adrião que no seu livro Lisboa Secreta nos descreve uma história de amor, raiva e ciúme: “Narram as lendas que Lisboa foi fundada por Ulisses, chefe dos Argonautas, que aqui se tomou de amores por Ofiússa, a deusa-Tejo, e que quando o Herói homérico regressou à sua pátria troiana no navio Argos, Ofiússa, vendo-se abandonada e só, se tomou de cólera e fez estremecer o planalto do Tejo, nascendo assim, por efeito dos telúricos estertores, as sete colinas de Olissipo, hoje Lisboa.”

É magnífico pensar que as nossas colinas terão tido origem no bater descompassado do coração de uma deusa apaixonada, a qual por despeito fez tremer a terra como prova do seu amor.
E porque não imaginar também, que a deusa serpente Ofiússa, que todos os dias renasce nas ondas atlânticas que agitam o Tejo que nos banha, não recordou séculos mais tarde o dia em que o bravo rei de Ítaca desprezou o seu seio, e agitando de novo o dorso com amor e com raiva, serpenteando por baixo das colinas lisboetas, castigou de novo a nossa cidade no ano da nossa desgraça de 1755?

Ofiússa representa os Oestrymia, povo lendário que terá vivido na bacia do Tejo e que prestava culto à grande serpente.

«Memórias da Cidade», Meia-Hora, 28/09/2007

As Manas Picoas

Quis o destino que também eu nascesse na Maternidade Alfredo da Costa, ali às Picoas, topónimo cuja origem é no mínimo bastante curiosa.

Conta-nos José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico, que havia por ali uma quinta que tinha como proprietárias duas senhoras, talvez irmãs, talvez solteironas. O seu pai era Picão de apelido e o povo, por graça ou por maldade, chamou-lhes «as Picoas» de onde ficou o topónimo.

Nas Memórias Paroquiais de 1758, tal como hoje, o sítio das Picoas aparece integrado na freguesia de São Sebastião da Pedreira. Ao cimo da colina, junto à Igreja de São Sebastião, a meio do caminho que ligava o antigo chafariz de Andaluz a Palhavã, que hoje é mais ou menos onde fica a António Augusto de Aguiar, gozavam-se os ares aprazíveis e lavados pelo vento.

Vivi nas Picoas muito tempo. Só saí para conhecer mundo e voltei com o mundo um pouco mais conhecido, e com saudades das mercearias e das drogarias, dos snack-bares e daquele ardina que só tinha um braço e que vendia jornais num vazado, onde em pequeno eu ia comprar o Diário Popular.

Em frente à minha porta, em plenas Avenidas Novas, havia uma taberna. Havia também uma esquadra, ao pé da praça, mais ao menos onde é o Fórum Picoas. A praça era muito grande, as gentes acotovelavam-se de um lado para o outro no meio dos legumes, das frutas, e das gaiolas das galinhas e dos coelhos, que eram depenadas e esfolados na hora.

Lembro-me da abertura do primeiro centro comercial de que à memória em Portugal, o Imaviz, que ainda sobrevive na Rua Tomás Ribeiro junto ao metro. Quando abriu, os casais deslumbrados entravam para passear e ver as montras, um pouco como ainda se faz por rotina noutros sítios.

Lisboa entretanto modernizou-se, as Picoas encheram-se de escritórios e de lojas e os seus filhos abandonaram-nas, enxotados para a periferia. Hoje estão novas por fora, embora cada vez mais cansadas e abandonadas por dentro.

Mas nas suas ruas sobrevivem os nomes dos poetas.

«Memórias da Cidade», Meia-Hora, 28/09/2007

25 setembro 2007

O Milagre da Ermida da Encarnação

Por este espaço irão passar semanalmente histórias de Lisboa, engraçadas, pitorescas ou simplesmente intrigantes, daquelas que por aí andam esquecidas nos livros. A de hoje é curiosa e prende-se à crença religiosa e à fé dos lisboetas.

Sem mais delongas cedo a palavra ao padre-cura Pedro de Oliveira, do lugar da Charneca, o qual nos relata nas Memórias Paroquiais de 1755 a bem-aventurança de um certo caminhante. Conta-nos o padre Pedro:

“Junto ao local da Panasqueira, na estrada que vai para Sacavém, no ano de 1725, vindo uma noite Joseph Manzone, de Lisboa, para sua casa, que era em outro lugar de Sacavém, e trazendo consigo dez mil cruzados, lhe saíram três ladrões para tirar-lhe o dinheiro, e invocando o patrocínio de Nossa Senhora da Encarnação, instantaneamente se achou a porta da sua casa, sem saber como, nem pelo caminho por onde foi: por cujo benefício logo fez levantar um nicho no mesmo lugar com a imagem de Nossa Senhora (…)”.

Este prodígio milagroso motivou os fiéis e a ermida foi durante alguns anos alvo de peregrinações, antes de ser destruída pelo terramoto em 1755 e deixada ao abandono.
Era um tempo em que tudo era possível, em que literalmente se acreditava que “a fé move montanhas”, e porque não, pessoas. Como tantos outros o dito popular subjacente ajudou ao longo dos tempos a criar uma ponte entre o senso comum e a fé. Hoje, muitas das vezes, não passa de uma frase de circunstância.

Os relatos de milagres foram criando raízes e abundam na História da cidade, cimentados na fé que comanda o dia-a-dia das suas gentes, embora cada vez menos porque as ciências têm vindo a usurpar, com grande êxito, o lugar privilegiado que o maravilhoso religioso vinha a ocupar na mente humana ao longo dos séculos.

Mas quantos de nós, confrontados com a adversidade, não pensámos ou rangemos entre dentes um esperançoso “Deus me ajude”?
«Memórias», Meia-Hora, 21/09/2007

Colaboração

Iniciei no passado dia 21 de Setembro uma colaboração com o jornal "Meia-Hora", que se traduz numa crónica semanal, publicada à sexta-feira, abordando os mesmos conteúdos que por aqui passam.

O texto será reproduzido neste espaço na semana seguinte à publicação.

Alguns temas já aqui apresentados serão objecto de um novo tratamento, pois penso ser interessante o seu reaproveitamento.

Dependendo da minha disponibilidade continuarão a surgir por aqui textos novos.

Obrigado pela vossa leitura,
Adriano Lisboa

03 julho 2007

O Deserto

Damas passeando em burros

Este espaço não se sustenta na crítica jocosa ou no comentário político, não se constrói como tal.

Isto dito, para o bem ou para o mal, peço que no texto que se segue se substituam os asininos referidos por outras alimárias, as de bossa. O escrito é de Alberto Pimentel, estudioso de Lisboa, e data do final do séc. XIX.

“Estava finalmente diante do Tejo. (…)

Sendo impossível lançar sobre as águas uma ponte, em razão da extrema largura do Tejo, encarregam-se da travessia os vapores do sr. Burnay, que, em poucos minutos, nos depõem na outra-banda. Chegados ao cais de Cacilhas, célebre pelo assassinato do general Teles Jordão [?], em 1833, é acometido o viajante por uma chusma de rapazes do sítio, que vem oferecer os tradicionais burrinhos.

Vamos ao castelo de Almada, à Fonte da Pipa, à fábrica da Margueira, e ainda mais longe, ao Pragal, ao Caramujo, à Cova da Piedade – nos burrinhos.

É portanto o Tejo a barreira interposta ao presente e ao passado, porque na margem direita silva o caminho-de-ferro, rodam os ónibus e os trens, há o grande movimento das modernas capitais, e na margem esquerda vão subindo, vergastados pelos rapazes, para o Alfeite ou a Amora, os anacrónicos burrinhos das bíblicas peregrinações. (…)”

Será que a incongruência de que tanto se fala se tratou apenas de um descuido … de um século?

Bibliografia e Imagem

26 junho 2007

Parte II - O Jardim dos Namorados

Jardim aliviado @Adriano Lisboa


Este texto complementa o abaixo.

Com o jardim tudo se muda e continua Pastor de Macedo:

“E o passeio de S. Pedro de Alcântara, como então se dizia, desembaraçado das sombras dos suicidas que por largo tempo sobre ele pairavam, voltou a ser um sorriso despreocupado no monótono dia-a-dia de Lisboa, ao mesmo tempo que passou a ser o Paraíso dos enamorados talvez por causa de um labirinto que ali existia e que teve de ser demolido justamente para evitar certas cenas que ali se davam e que o leitor facilmente advinha.

E assim como o labirinto foi destruído em nome da moral alfacinha, também o zelo da autoridade, em nome dessa mesma moral que a muitos parecerá ridícula, pegou num guarda municipal (…) e colocou-o na parte inferior da escada de pedra que faz a comunicação entre os dois tabuleiros, para não deixar qualquer homem, fosse qual fosse, levantar os olhos quando alguma senhora descesse.”

Desculpem-me o sorriso…

Parte I - O Jardim dos Suicidas


Jardim carregado @Adriano Lisboa

Este texto completa-se com o que estará acima.

Ao lado direito do Elevador da Glória está o jardim de São Pedro de Alcântara, um dos miradouros mais celebrados da cidade, ponto de passagem obrigatório para turistas e curiosos. A Baixa Pombalina e as colinas orientais estendem-se ao olhar.

A meio do gradeamento que suporta o miradouro encontramos umas escadinhas de pedra que nos conduzem abaixo, ao jardim do poeta de , António Nobre. Aí encontramos alguns bustos e uma placa evocativa do poeta. Hoje parece um abandono.

Acredite-se ou não, este local foi vazadouro de lixos e de animais mortos (!) nos anos que se seguiram ao grande terramoto. Só em 1835, depois de atulhado por iniciativa da Guarda Real da Polícia devido ao cheiro nauseabundo que por aí pairava, se construiu o jardim, o qual encerra memórias de cenas trágicas e outras, talvez cómicas:

Das primeiras conta Luís Pastor de Macedo:

“(…) Mas ao passo que Lisboa desfrutava duma encantadora janela escancarada sobre si mesma e um jardim deliciosíssimo de copado arvoredo, dispunha também de um sítio esplêndido para a tentação dos suicidas. E essa aprazível e pitoresca varanda de parapeito de alvenaria com um metro de altura e com poiais de cantaria para que o visitante curioso pudesse sentar-se e gozar regaladamente o belo panorama, passou a ser procurada de maneira desenfreada por todos os desiluduidos que espectaculosamente queriam deixar este mundo.

E tantos foram ali os suicídios, tanto barulho se fez na Imprensa, tantos clamores subiram às esferas municipais, que a Câmara, já de posse da administração do jardim desde 1839, por resolução de 12 de Maio de 1864, mandou substituir o parapeito por uma grade, parte da qual pertencera ao antigo palácio da Inquisição.”

De suicidas se fartava a futura Rua das Taipas e assim se explica o súbito arrepio, frio e pastoso, que percorre a espinha do desprevenido mictante, que depois de uma noite de folia no sobranceiro Bairro Alto desce ao jardim e sem vergonha aí se permite aliviar os seus fluidos.

Bibliografia

18 junho 2007

Introdução

Lisboa - século XVII
.
Este texto chega com atraso. Por direito estaria lá em baixo, no primeiro capítulo deste livro que funciona ao contrário, que sobe páginas em vez de descer. Chega adiado mas no seu tempo.

É do Padre António Carvalho da Costa, e foi retirado da sua monumental obra Corografia Portuguesa. Introduz o Tratado VIII, último do terceiro, e último, volume, intitulado “da cidade de Lisboa”, e é bonito:

“Da descripção Topografica da famosa, nobre, & opulenta Cidade de Lisboa.

A REGIA Cidade de Lisboa, Corte de Portugal, & Emporio de Europa, intentamos descrever, & ainda que merecia mais hum livro particular, que huma breve narração, procuraremos estreytar as suas grandezas, não deyxando de individuar as suas principaes partes.

Querem os Astrologos que esteja situada debayxo do Signo de Aries, & he justo que dominasse o primeiro dos Signos do Ceo a primeyra das Cidades do mundo. Está na latitud Boreal de 38. graos, 48. minutos, & na longitud de 12. Graos, na parte mais Occidental de Espanha, & em tão docil clima, que sem que a offendão os ardores do Estio, temperados com o vento Oeste, a que chamamos viração, com a vizinhança do mar, & com a frescura dos valles, não padece excessiva calma; sendo o Inverno ainda menos rigoroso, porque o Sol com a sua presença, quasi sempre livre de nuvens, & nevoas, & sem que nunca cahisse neve, o que se contará com prodigio; fica sendo o seu fertil terreno huma perpetua Primavera.

Procurou a Arte aperfeyçoar tantos beneficios da natureza, emmendando tambem alguns defeytos, que na desigualade de sete montes fazião a sua situação menos accomodada; porém ganhadas com suaves subidas aquellas imminencias, como estão coroadas de templos, & Palacios, formão hum perfeyto Antiteatro, deyxando lograr aos que entrão pelo Porto aquella bellissima vista, que se perderia, se fosse assentada a Cidade em huma planicie; & para tratarmos methodicamente das suas partes, descreveremos cada hum dos sete montes, sobre que se eleva esta Augusta emula de Roma.”

O relato é de finais do século XVII, de antes do terramoto que enegreceu as mentes. Lisboa era a Primavera perpétua, o clima ameno, era a Beleza do anfiteatro de colinas que encanta quem pelo rio entra. Lisboa era a primeira cidade no mundo, sob a sombra do primeiro signo, que a Roma se compara, e a que só Roma se compara.

Talvez ainda vivamos no Paraíso… e não o sabemos. Ou então, talvez não.

01 junho 2007

Garrett, o elegante

Garrett, desenho a carvão, atribuído a Sendim

No texto anterior mencionei Garrett, elegante, descendo a colina do Chiado até ao D. Maria. Encontrei no entretando a imagem garrida dessa elegância e não resisto, aqui está, pelas palavras de Norberto de Araújo:

"(...) Garrett, flamante de casaca verde e bronze com botões dourados, colete de piqué de grandes bandas, cintado e pernalta, calça côr de alecrim, peitilho e punhos de canudo, luvas côr de canário, gravata azul ferrete (...)".

Atentem na conbinação das cores. Confesso que os meus olhos se enchem de verde, não do da esperança, descabido no contexto, mas do outro, do da inveja...


Bibliografia e Imagem

30 maio 2007

Casa Dantesca

Actual nº 8 do Beco do Forno

Por volta de 1840 Garrett vivia na Rua Ivens, pertinho da que viria a ser a sua rua e que era então a Rua do Chiado, às Portas de Santa Catarina. Depois mudou-se para a Rua da Barroca no Bairro Alto. O poeta, elegante, descia a colina até ao Dona Maria, sua criação, lentamente observando e sendo observado, cumprimentando e sendo cumprimentado, meneios de bengala e chapéu, por cavalheiros e algumas damas.

Nas traseiras do Teatro tinha um dos seus poisos favoritos. Era a casa, uma vivenda no Beco do Forno n.º 8, do seu amigo e biógrafo Gomes de Amorim, a qual se consumiu completamente num fogo cruel em 1863.

Mas já antes disso o poeta chamava à casa, Casa Dantesca.
Pastor de Macedo conta-nos o episódio, caricato, que envolveu a sua casa e o seu amigo e que levou o último a baptizá-la com o epíteto infernal:

“Garrett amava muito aquela vivenda, porque dizia ele, lhe dava a mais graciosa ideia dos círculos do Inferno. Denominou-a casa dantesca na noite do mais rigoroso inverno que teve o ano de 1851. Chovera torrencialmente ao escurecer: os meus vizinhos do pátio acabavam apenas de armar o passadiço de tábuas quando o poeta assomou à porta.

De um lado, a rama do pinheiro, ardendo, lançava enormes línguas de fogo das bocas dos fornos: do outro, baloiçava-se, pendente do tecto, com outro fogaréu gigante por baixo, o tacho de arame, onde dançavam ruidosamente as amêndoas semi-torradas, mexidas sem cessar pelo meu honrado vizinho Luiz.

[O poeta, qual barqueiro do Hades, dirige-se temerário para o calor da outra margem da chuva que abatia a terra] O clarão das chamas reflectia-se na água, e as tábuas gemiam e vergavam, fazendo chape-chape no charco, sob os pés do autor de D. Branca. Encantado com aquele fragmento de poema, e sem saber a qual dos quadros devia prestar maior atenção, hesitou, perdeu o equilíbrio, deslocou a ponte e caiu na poça, praguejando e dando a poesia local a todos os diabos.

Teve que despir-se e meter-se na minha cama, enquanto se lhe foi buscar roupa e botas, porque ficara como um pinto!

«Dessa noite em diante, dizia que eu morava na casa dantesca, subindo, à mão esquerda do inferno do Dante».

Casa dantesca e depois do sucedido ao divino Garrett, casa histórica. Nenhuma outra em Lisboa, teve a oportunidade de albergar o elegante poeta no maior dos desalinhos e numa sopa…”

No melhor poeta cai a lama, ou seja, também o melhor poeta cai na lama.

22 maio 2007

O Adamastor

O Adamastor de Santa Catarina ©Adriano Lisboa, 2006


Temos lutado contra os mostrengos, os Adamastores que nesta cidade nos querem derrubar.

São os destrutivos como o apocalíptico terramoto que consumiu ouros e pratas entretanto por aí acumulados, e que gerou lenda por direito próprio, intervenção divina ou natural, pensado e debatido por filósofos, teóricos, e intelectuais da época. Do meio dos seus horrores, dominou o monstro a mão férrea do Marquês, tirano com visão, que entre o caos ajudou e castigou os vivos, enterrou os mortos, e pensou os alicerces da nova cidade.

São os viciantes como o ócio, o sol de Verão ou o tédio pessoano, ou também as corrupções e corruptelas que hoje nos acinzentam os horizontes, e que ninguém parece querer vencer.

Mas o Adamastor, o original, lá do alto, de Santa Catarina, mira Lisboa. Conseguimos dominá-lo, a este que não aos outros, pois enlevado e embalado pela beleza ribeirinha que se espraia à sua frente, pelos telhados do casario e pelo azul que do céu desliza e tinge as águas rutilantes do rio, o monstro mergulha em sonhos de ópio e se esquece de nos assombrar.

Vários poetas cantaram o Adamastor. Camões, que lhe deu a forma, horrendo e lacrimoso, pintou-o assim. Pessoa dobrou o mostrengo à vontade de D. João II, pela mão do homem do leme, a quem os Xutos também recorreram para o torcer, e assim, remar contra a maré.

Percam 2 minutos a ler os poemas, vale a pena…

21 maio 2007

(Isto não é) A Apologia de Sócrates


Júlio de Castilho, retrato a carvão executado em 1920 por José Malhoa

Júlio Castilho, digna figura da olisipografia, legou-nos uma obra rica e textualmente inspirada, à qual recorrerei sempre que se justifique.
Eis o que escreveu no início do século passado:

"Chegou modernamente tudo isso de honrarias à miséria a que nunca se imaginou que pudesse chegar! Nada mais baixo que os títulos, nada mais baixo que as condecorações, nada mais baixo que os tratamentos distintos. Já no seu tempo dizia o abade de Jazente, que só três coisas andavam baratas:

Os tremoços, o arroz, e as Senhorias.

Que diria hoje!

Ao ínfimo cidadão se escreve como dantes só se escrevia a ministros. O protocolo epistolar degenerou em banalidade irrisória [ultimamente, a democratização imposta pelo e-mail veio alterar este pretensiosismo de linha].

Mente Marta como sobrescrito de carta – moteja o anexim; e tem razão.

Que isto por cá, mais ou menos, sempre andou um tanto fora dos eixos, é indubitável; sempre exageraram portugueses os extremos e requintes da civilidade; e nisso concordam estrangeiros de grande critério, como, por exemplo, Feijóo, o beneditino do Theatro critico, dizendo:

Vi en una ocasion requebrar-se dos aulicos [membros da corte] com tan extremada ternura, que un Portuguès podria aprender de ellos frases y gestos para un galantèo."

E mais não digo.

08 maio 2007

Beco da Índia

Beco da Índia - Início do séc. XX

A Índia, pérola do nosso imaginário, símbolo de riquezas picantes e sutras de Kama, careceu durante séculos de representação condigna nas ruas de Lisboa. Embora a ocupação imperial de Goa se tenha estendido de 1512 até 1961, só em 1948 o Império achou, a bem da Nação, dotar a cidade capital com uma ribeirinha Avenida da Índia. Entretanto o sub-continente subsistia por becos e ruelas, levando a que Gomes de Brito escrevesse, numa linguagem elegante e plena de estereótipos históricos entretanto revistos pelos estudos pós-coloniais:

“Lisbôa, de cujo porto se abalaram as armadas que conquistaram a Índia, Lisbôa, séde de uma epopéa mil vezes mais proveitosa ao mundo do que a que se gerou da ambição de um corso, tendo ao seu dispor a recordação de milhares de homens e de terras cujos nomes são de outras tantas glorias, outras tantas apothéoses para a historia da nação portuguesa; Lisbôa, se quis ter uma rua para o infante D. Henrique, teve que desapossar d’ella S. Thomé, se quis ter uma rua para Vasco da Gama, teve de conquistal-a ás lamas da Boa Vista, se quis um ridículo quadradinho para glorificar Luis de Camões, teve que deitar abaixo uns miseráveis casebres.

Emfim, ao conquistador de Goa, ao vencedor de Ormuz, depois de lhe deitar as cinzas ao vento, Lisbôa deu-lhe por homenagem a ruasinha estreita e escura onde o filho do grande Affonso d’Albuquerque edificou umas casas, e a Índia, a própria Índia, essa Índia, nossa perdição e nossa gloria, Lisbôa entendeu que o melhor destino a dar-lhe era um beco sem sahida; - o beco da Índia, na Rua do Convento da Encarnação!

Grande lição de historia Philosofica, encoberta em uma ironia pungentíssima, vibrada em hora de bom humor pela veia sarcástica de algum vereador de gosto, ao fadigoso lidar longincuo do velho Portugal.”

Bibliografia

05 maio 2007

Cariño

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Escreveu Cesário Verde. Permitam-me por vezes passar por aqui alguma poesia.
A estima da nossa cidade está por baixo. Em outro dia, alguém dizia num media respeitado e respeitável, exercendo o seu direito de cidadania que não contesto e aprovo, que era triste, que Lisboa deixara de ser uma cidade internacional, sequer de relevância europeia, resumindo-se hoje a uma cidade iberista por contingência e destino, talvez comparável à [quente] Sevilha.
Digo eu, e depois? Lisboa não é o que é, é o que penso que é.

Continuo a amá-la.
Hoje não vou em histórias e deixo aqui algo de carinho que por ela sinto, pela pena de Eugénio de Andrade, que também a amava.

Alguém diz com lentidão:
“Lisboa, sabes…”
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,

um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?

23 abril 2007

Capotes



O Bairro Alto, local de emoções fortes, possui uma aura de transgressão e de quebra de regras, e de perigos assomando das suas antigas estalagens, baiucas e tabernas, travestidas hoje em bares e mini-discos onde a juventude despeja “shoots” na ânsia sôfrega de percorrer rapidamente o caminho entre a felicidade efémera e a insolvência física .

A História truculenta do Bairro, ideada em tempos absolutos de leis do mais forte, está patente no pequeno trecho que transcrevo das Peregrinações de Norberto de Araújo. Acrescento que a parte final da história, já a tinha lido no Memorial do Convento, do nosso Saramago.

Norberto de Araújo chega à Rua da Vinha e fala-nos à porta do seu nº 20:

"Repara [NA dirige-se na sua obra a um interlocutor a que chama Dilecto], nesta espécie de largo, o pórtico da entrada, em arco de cantaria; (…) É uma adega e carvoaria sombria mas típica, antiquíssima, destas que remontam, escondidas e sem aura, ao século XVII, tempo em que seriam estalagens e casa de comidas. (…)

Segundo a tradição oral já recolhida em romances populares, e que certos indícios parecem confirmar, aqui se reuniam os Capotes Pretos do Infante D. Francisco, irmão de D. João V, bando que se travava de brigas nocturnas frequentes com os Capotes Brancos de Sebastião José de Carvalho e Melo, quando este, moço volteiro, não sonhava ainda ascender à diplomacia, que nele precedeu a actividade política de Secretário de Estado. (…)”

Agora pela Rua da Rosa:
“Aqui neste prédio nºs 148-154, está uma velha estalagem de recolha de saloias lavadeiras. (…) Ora segundo a tradição oral, foi aqui a taverna «estalajadeira», por onde nos começos do século XVIII Sebastião José, mais o bando de sequazes de brigas bairristas – nos quais o popular e o fidalgo se misturavam – tinham a sede nocturna dos Capotes Brancos, grupo, ao jeito do tempo, rival dos Capotes Pretos capitaneado pelo truculento Infante D. Francisco, Duque de Beja, senhor de trinta e sete vilas, e de onze alcaidarias, estoura-vergas e cruel, que certa vez para experimentar a sua pontaria alvejou e atirou ao mar um pobre marujo tranquilo na sua faina na verga do navio. (…)”

Outros tempos dir-me-ão. Que pensar então do bando de arruaceiros mentecaptos que há uns anos atrás, pelas ruas do bairro, perseguiu e matou alguém em prol de uma diferença genética menos que residual?

José Mário Branco cantou os capotes. Aqui está a letra.