28 março 2007

O Assombro da Ermida da Encarnação

Estrada dos Olivais ao Aeroporto, perto da Panasqueira, ao fundo a estrada de Sacavém


A estória que a seguir transcrevo é tão surpreendente, que me obrigo a dispensar introduções tal a convicção com que nos é exposta:

“Junto ao local da Panasqueira, na estrada que vai para Sacavém, no ano de 1725, vindo uma noite Joseph Manzone, de Lisboa, para sua casa, que era em outro lugar de Sacavém, e trazendo consigo dez mil cruzados, lhe saíram três ladrões para tirar-lhe o dinheiro, e invocando o patrocínio de Nossa Senhora da Encarnação, instantaneamente se achou a porta da sua casa, sem saber como, nem pelo caminho por onde foi: por cujo benefício logo fez levantar um nicho no mesmo lugar com a imagem de Nossa Senhora (…)”.

Este relato é do Padre Cura Pedro de Oliveira, do lugar da Charneca, e foi tomado das Memórias Paroquiais de 1755. A narrativa prossegue com a notícia de que o prodígio motivou os fiéis e de que a ermida, durante alguns anos alvo de peregrinações, foi destruída pelo terramoto de 1755 e deixada ao abandono.

Que “a fé move montanhas” já o sabíamos, é ditado popular de cunho religioso, que como tantos outros se obriga a estabelecer a ponte entre o senso comum e o crédito de tradições e crenças. Que a mesma fé possibilite a teletransporte de matéria entra no campo do maravilhoso fantástico, e necessariamente que nisso crer carece de uma contextualização social e espácio-temporal que penso não ser este o lugar adequado para prosseguir.

Hoje em dia, físicas quânticas e outras usurparam o espaço do maravilhoso, procurando explicá-lo repetindo-o em ambientes acondicionados e estéreis, em suma, sem gente. Mas qual o português que, confrontado com a adversidade, nunca pensou ou rangeu entre dentes um esperançoso “Deus me ajude”?

Fica a estória.

Ruas Direitas

Rua Direita da Ameixoeira ©Adriano Lisboa, 2007

As ruas direitas nem sempre literalmente o foram. O edificado da cidade medieval, levantado entre muralhas e portas, ruas e travessas, portagens e ermos, definia-se serpenteando entre esquinas e escadinhas, curvas e contracurvas, pequenos largos e rossios. Eram então estas ruas direitas directas, isso sim, ligando maioritariamente as portas opostas da cidade.

No Sumário de Cristóvão Rodrigues de Oliveira, 1551, quase dois séculos após a edificação da muralha fernandina, a qual alargou substancialmente os limites da Lisboa medieval, estão mencionadas vinte e uma ruas direitas, das quais três faziam ainda referência toponímica a portas da cidade.

Com o tempo, a necessária evolução urbanística, o desapego aos muros defensivos e a consequente construção fora deles, levou a que estes arruamentos se reproduzissem mais direitos do que recortados.

20 março 2007

Hagiotopónimos em Lisboa

Esquina em Lisboa/Caselas ©Adriano Lisboa, 2007

Os hagiotopónimos, topónimos de cariz religioso, geralmente consagrantes de santos, são predominantes em Lisboa. País de um ardor religioso que no entanto já ardeu mais intenso, Portugal utiliza-os como uma exteriorização no terreno da sua fé, a qual, permanecendo no campo do etéreo permite-se assim no concreto.

Os hagiotopónimos estão nas igrejas, capelas, ermidas e conventos, mas também titulam ruas e travessas, escolas e associações, tendo inclusive assento na residência de órgãos de soberania. Mas o rol mais imponente de santos na cidade secular prende-se, sem dúvida, à sua qualificação das freguesias da capital. Das 52 presentes talvez apenas uma dezena não se prendam ao campo do religioso católico.

No entanto, a apropriação religiosa da cidade nem sempre foi consensual. Vejamos o que escreveu em 1935, com graça, o ilustre olisipógrafo Gomes de Brito:

“No Roteiro das ruas de Lisboa se pode ver que há nesta cidade, verdadeira imagem da corte do céu, tantos são os santos que patrocinam as ruas com seus nomes veneráveis. [Gomes de Brito prossegue enumerando variadíssimos topónimos] (…).

Não declaramos guerra aos santos, ainda que bem desejemos ver a capital deste país mais ilustrada e menos santarrona. Temos, porém, sumo gosto, por isso mesmo, e porque estamos convencidos de que os santos só ficam bem nos altares, em ajudar a Câmara Municipal de Lisboa com algum alvitre, uma vez que outra vez oferecido, sem pretensão como sem doutorice, a prosseguir no louvável propósito de honrar a memoria d’aqueles conterrâneos nossos, e a de estrangeiros também, que publicamente, e por actos ou factos meritórios, se hajam distinguido entre nós, bem merecendo, portanto, da posteridade reconhecida e ilustrada. (…)”

De então para cá Lisboa tem continuado a consagrar o religioso na sua toponímia, é certo que não com a determinação de outros tempos mas continuando mesmo assim a tradição professa do seu chão.

Bibliografia