30 maio 2007

Casa Dantesca

Actual nº 8 do Beco do Forno

Por volta de 1840 Garrett vivia na Rua Ivens, pertinho da que viria a ser a sua rua e que era então a Rua do Chiado, às Portas de Santa Catarina. Depois mudou-se para a Rua da Barroca no Bairro Alto. O poeta, elegante, descia a colina até ao Dona Maria, sua criação, lentamente observando e sendo observado, cumprimentando e sendo cumprimentado, meneios de bengala e chapéu, por cavalheiros e algumas damas.

Nas traseiras do Teatro tinha um dos seus poisos favoritos. Era a casa, uma vivenda no Beco do Forno n.º 8, do seu amigo e biógrafo Gomes de Amorim, a qual se consumiu completamente num fogo cruel em 1863.

Mas já antes disso o poeta chamava à casa, Casa Dantesca.
Pastor de Macedo conta-nos o episódio, caricato, que envolveu a sua casa e o seu amigo e que levou o último a baptizá-la com o epíteto infernal:

“Garrett amava muito aquela vivenda, porque dizia ele, lhe dava a mais graciosa ideia dos círculos do Inferno. Denominou-a casa dantesca na noite do mais rigoroso inverno que teve o ano de 1851. Chovera torrencialmente ao escurecer: os meus vizinhos do pátio acabavam apenas de armar o passadiço de tábuas quando o poeta assomou à porta.

De um lado, a rama do pinheiro, ardendo, lançava enormes línguas de fogo das bocas dos fornos: do outro, baloiçava-se, pendente do tecto, com outro fogaréu gigante por baixo, o tacho de arame, onde dançavam ruidosamente as amêndoas semi-torradas, mexidas sem cessar pelo meu honrado vizinho Luiz.

[O poeta, qual barqueiro do Hades, dirige-se temerário para o calor da outra margem da chuva que abatia a terra] O clarão das chamas reflectia-se na água, e as tábuas gemiam e vergavam, fazendo chape-chape no charco, sob os pés do autor de D. Branca. Encantado com aquele fragmento de poema, e sem saber a qual dos quadros devia prestar maior atenção, hesitou, perdeu o equilíbrio, deslocou a ponte e caiu na poça, praguejando e dando a poesia local a todos os diabos.

Teve que despir-se e meter-se na minha cama, enquanto se lhe foi buscar roupa e botas, porque ficara como um pinto!

«Dessa noite em diante, dizia que eu morava na casa dantesca, subindo, à mão esquerda do inferno do Dante».

Casa dantesca e depois do sucedido ao divino Garrett, casa histórica. Nenhuma outra em Lisboa, teve a oportunidade de albergar o elegante poeta no maior dos desalinhos e numa sopa…”

No melhor poeta cai a lama, ou seja, também o melhor poeta cai na lama.

22 maio 2007

O Adamastor

O Adamastor de Santa Catarina ©Adriano Lisboa, 2006


Temos lutado contra os mostrengos, os Adamastores que nesta cidade nos querem derrubar.

São os destrutivos como o apocalíptico terramoto que consumiu ouros e pratas entretanto por aí acumulados, e que gerou lenda por direito próprio, intervenção divina ou natural, pensado e debatido por filósofos, teóricos, e intelectuais da época. Do meio dos seus horrores, dominou o monstro a mão férrea do Marquês, tirano com visão, que entre o caos ajudou e castigou os vivos, enterrou os mortos, e pensou os alicerces da nova cidade.

São os viciantes como o ócio, o sol de Verão ou o tédio pessoano, ou também as corrupções e corruptelas que hoje nos acinzentam os horizontes, e que ninguém parece querer vencer.

Mas o Adamastor, o original, lá do alto, de Santa Catarina, mira Lisboa. Conseguimos dominá-lo, a este que não aos outros, pois enlevado e embalado pela beleza ribeirinha que se espraia à sua frente, pelos telhados do casario e pelo azul que do céu desliza e tinge as águas rutilantes do rio, o monstro mergulha em sonhos de ópio e se esquece de nos assombrar.

Vários poetas cantaram o Adamastor. Camões, que lhe deu a forma, horrendo e lacrimoso, pintou-o assim. Pessoa dobrou o mostrengo à vontade de D. João II, pela mão do homem do leme, a quem os Xutos também recorreram para o torcer, e assim, remar contra a maré.

Percam 2 minutos a ler os poemas, vale a pena…

21 maio 2007

(Isto não é) A Apologia de Sócrates


Júlio de Castilho, retrato a carvão executado em 1920 por José Malhoa

Júlio Castilho, digna figura da olisipografia, legou-nos uma obra rica e textualmente inspirada, à qual recorrerei sempre que se justifique.
Eis o que escreveu no início do século passado:

"Chegou modernamente tudo isso de honrarias à miséria a que nunca se imaginou que pudesse chegar! Nada mais baixo que os títulos, nada mais baixo que as condecorações, nada mais baixo que os tratamentos distintos. Já no seu tempo dizia o abade de Jazente, que só três coisas andavam baratas:

Os tremoços, o arroz, e as Senhorias.

Que diria hoje!

Ao ínfimo cidadão se escreve como dantes só se escrevia a ministros. O protocolo epistolar degenerou em banalidade irrisória [ultimamente, a democratização imposta pelo e-mail veio alterar este pretensiosismo de linha].

Mente Marta como sobrescrito de carta – moteja o anexim; e tem razão.

Que isto por cá, mais ou menos, sempre andou um tanto fora dos eixos, é indubitável; sempre exageraram portugueses os extremos e requintes da civilidade; e nisso concordam estrangeiros de grande critério, como, por exemplo, Feijóo, o beneditino do Theatro critico, dizendo:

Vi en una ocasion requebrar-se dos aulicos [membros da corte] com tan extremada ternura, que un Portuguès podria aprender de ellos frases y gestos para un galantèo."

E mais não digo.

08 maio 2007

Beco da Índia

Beco da Índia - Início do séc. XX

A Índia, pérola do nosso imaginário, símbolo de riquezas picantes e sutras de Kama, careceu durante séculos de representação condigna nas ruas de Lisboa. Embora a ocupação imperial de Goa se tenha estendido de 1512 até 1961, só em 1948 o Império achou, a bem da Nação, dotar a cidade capital com uma ribeirinha Avenida da Índia. Entretanto o sub-continente subsistia por becos e ruelas, levando a que Gomes de Brito escrevesse, numa linguagem elegante e plena de estereótipos históricos entretanto revistos pelos estudos pós-coloniais:

“Lisbôa, de cujo porto se abalaram as armadas que conquistaram a Índia, Lisbôa, séde de uma epopéa mil vezes mais proveitosa ao mundo do que a que se gerou da ambição de um corso, tendo ao seu dispor a recordação de milhares de homens e de terras cujos nomes são de outras tantas glorias, outras tantas apothéoses para a historia da nação portuguesa; Lisbôa, se quis ter uma rua para o infante D. Henrique, teve que desapossar d’ella S. Thomé, se quis ter uma rua para Vasco da Gama, teve de conquistal-a ás lamas da Boa Vista, se quis um ridículo quadradinho para glorificar Luis de Camões, teve que deitar abaixo uns miseráveis casebres.

Emfim, ao conquistador de Goa, ao vencedor de Ormuz, depois de lhe deitar as cinzas ao vento, Lisbôa deu-lhe por homenagem a ruasinha estreita e escura onde o filho do grande Affonso d’Albuquerque edificou umas casas, e a Índia, a própria Índia, essa Índia, nossa perdição e nossa gloria, Lisbôa entendeu que o melhor destino a dar-lhe era um beco sem sahida; - o beco da Índia, na Rua do Convento da Encarnação!

Grande lição de historia Philosofica, encoberta em uma ironia pungentíssima, vibrada em hora de bom humor pela veia sarcástica de algum vereador de gosto, ao fadigoso lidar longincuo do velho Portugal.”

Bibliografia

05 maio 2007

Cariño

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Escreveu Cesário Verde. Permitam-me por vezes passar por aqui alguma poesia.
A estima da nossa cidade está por baixo. Em outro dia, alguém dizia num media respeitado e respeitável, exercendo o seu direito de cidadania que não contesto e aprovo, que era triste, que Lisboa deixara de ser uma cidade internacional, sequer de relevância europeia, resumindo-se hoje a uma cidade iberista por contingência e destino, talvez comparável à [quente] Sevilha.
Digo eu, e depois? Lisboa não é o que é, é o que penso que é.

Continuo a amá-la.
Hoje não vou em histórias e deixo aqui algo de carinho que por ela sinto, pela pena de Eugénio de Andrade, que também a amava.

Alguém diz com lentidão:
“Lisboa, sabes…”
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,

um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?