05 outubro 2007

A Deusa e o Guerreiro

Coexistem várias lendas relacionadas com a origem mítica da nossa cidade. Uma das mais interessantes, porventura uma das mais belas, respeita às suas colinas, perdidas hoje em dia entre o casario. A lenda dá-nos conta da paixão que envolveu Ofiússa, a deusa serpente, e Ulisses, o grande herói grego intimamente ligado ao mito criador de Lisboa, em tempos Ulysipona.

Cedo a palavra ao professor Vitor Manuel Adrião que no seu livro Lisboa Secreta nos descreve uma história de amor, raiva e ciúme: “Narram as lendas que Lisboa foi fundada por Ulisses, chefe dos Argonautas, que aqui se tomou de amores por Ofiússa, a deusa-Tejo, e que quando o Herói homérico regressou à sua pátria troiana no navio Argos, Ofiússa, vendo-se abandonada e só, se tomou de cólera e fez estremecer o planalto do Tejo, nascendo assim, por efeito dos telúricos estertores, as sete colinas de Olissipo, hoje Lisboa.”

É magnífico pensar que as nossas colinas terão tido origem no bater descompassado do coração de uma deusa apaixonada, a qual por despeito fez tremer a terra como prova do seu amor.
E porque não imaginar também, que a deusa serpente Ofiússa, que todos os dias renasce nas ondas atlânticas que agitam o Tejo que nos banha, não recordou séculos mais tarde o dia em que o bravo rei de Ítaca desprezou o seu seio, e agitando de novo o dorso com amor e com raiva, serpenteando por baixo das colinas lisboetas, castigou de novo a nossa cidade no ano da nossa desgraça de 1755?

Ofiússa representa os Oestrymia, povo lendário que terá vivido na bacia do Tejo e que prestava culto à grande serpente.

«Memórias da Cidade», Meia-Hora, 28/09/2007

As Manas Picoas

Quis o destino que também eu nascesse na Maternidade Alfredo da Costa, ali às Picoas, topónimo cuja origem é no mínimo bastante curiosa.

Conta-nos José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico, que havia por ali uma quinta que tinha como proprietárias duas senhoras, talvez irmãs, talvez solteironas. O seu pai era Picão de apelido e o povo, por graça ou por maldade, chamou-lhes «as Picoas» de onde ficou o topónimo.

Nas Memórias Paroquiais de 1758, tal como hoje, o sítio das Picoas aparece integrado na freguesia de São Sebastião da Pedreira. Ao cimo da colina, junto à Igreja de São Sebastião, a meio do caminho que ligava o antigo chafariz de Andaluz a Palhavã, que hoje é mais ou menos onde fica a António Augusto de Aguiar, gozavam-se os ares aprazíveis e lavados pelo vento.

Vivi nas Picoas muito tempo. Só saí para conhecer mundo e voltei com o mundo um pouco mais conhecido, e com saudades das mercearias e das drogarias, dos snack-bares e daquele ardina que só tinha um braço e que vendia jornais num vazado, onde em pequeno eu ia comprar o Diário Popular.

Em frente à minha porta, em plenas Avenidas Novas, havia uma taberna. Havia também uma esquadra, ao pé da praça, mais ao menos onde é o Fórum Picoas. A praça era muito grande, as gentes acotovelavam-se de um lado para o outro no meio dos legumes, das frutas, e das gaiolas das galinhas e dos coelhos, que eram depenadas e esfolados na hora.

Lembro-me da abertura do primeiro centro comercial de que à memória em Portugal, o Imaviz, que ainda sobrevive na Rua Tomás Ribeiro junto ao metro. Quando abriu, os casais deslumbrados entravam para passear e ver as montras, um pouco como ainda se faz por rotina noutros sítios.

Lisboa entretanto modernizou-se, as Picoas encheram-se de escritórios e de lojas e os seus filhos abandonaram-nas, enxotados para a periferia. Hoje estão novas por fora, embora cada vez mais cansadas e abandonadas por dentro.

Mas nas suas ruas sobrevivem os nomes dos poetas.

«Memórias da Cidade», Meia-Hora, 28/09/2007